Uma das sugestões oferecidas pelos estudiosos quando se pergunta se haverá meios suficientes para alimentar dez bilhões de pessoas – população estimada para o planeta em 2050 – é o circuito curto dos alimentos. Isto quer dizer, de maneira bem simples, reduzir o espaço entre a produção agrícola e a mesa dos cidadãos que consomem os alimentos.

Há quem julgue ser uma solução romântica, pouco viável, sobretudo se considerarmos o modelo mais utilizado atualmente, de monoculturas e de produtos que precisam fazer longas viagens para chegar ao consumidor. Na maioria das vezes, as pessoas comuns não saberão dizer de onde vêm a berinjela ou a cenoura que estão comprando.

Por outro lado, há também quem consiga viver, na prática, o circuito curto de alimentos, trazendo uma história de muitos desafios, mas também de progresso. É possível, portanto. O mais difícil é mudar o foco, do lucro acima de tudo, que se tornou hábito no business as usual, para uma melhor qualidade de vida e respeito a tudo que respira e cresce.

A barraquinha de Alcir Fernandes na feira-livre é das mais disputadas. O que mais me chamou a atenção, e que me fez ter desejo de trazer a história dele para compartilhar com os leitores, é que Alcir está sempre sorridente, mostrando um humor e uma leveza bem diferentes do astral da maioria dos comerciantes. Alcir é o exemplo vivo da viabilidade do circuito curto de alimentos. Ele mesmo traz seus produtos orgânicos do sítio em Itaboraí, onde planta. Tem ajuda de Juliana e Marko para vender, e adora uma conversa com seus clientes.

Mas, apesar de seu bom humor, Alcir não leva uma vida muito fácil. Tanto que foi penoso achar um horário na agenda dele para esta entrevista, que consegui num tempo entre o fim da feira e o início do desmonte de toda a traquitana necessária para comercializar os produtos. Abaixo, a história de Alcir:

Você é quem planta os alimentos que vende, e isto é raro, mesmo entre os produtores orgânicos. Como foi que começou?

Alcir Fernandes – Eu nasci e fui criado até os dez anos em São Fidélis (Norte Fluminense), numa roça mantida pela família, sem geladeira e sem televisão. A nossa diversão – minha e das minhas duas irmãs – era estudar, e me lembro até hoje que o prêmio que ganhávamos quando conseguíamos tirar o primeiro lugar na escola era uma xícara de louça.

As crianças também lidavam na roça?

Alcir Fernandes – Sim, mexíamos muito com plantações. Eram alqueires de fazenda que meu avô tinha deixado e que meu pai decidiu levar adiante, com boi, criação de galinha, de porcos. Eu me lembro que engordávamos os porcos com abóbora e goiaba, e ficava uma carne deliciosa.

Da roça, você veio morar na grande cidade?

Alcir Fernandes – Sim. Fui bancário, trabalhei 31 anos na Caixa, foi meu último emprego. E era bem puxado. Trabalhava dez horas por dia, com uma responsabilidade enorme, porque mexia com dinheiro dos outros, né? Enquanto isso, meu pai adquiriu uns alqueires em Itaboraí e começou lá a fazer uma produção agrícola, depois foi vendendo, aos poucos. E eu pedi a ele que guardasse um lote para mim, ele guardou. Foi lá que comecei a montar minha roça, que mantenho há quatro anos, desde que me aposentei.

Como foi este início?

Alcir Fernandes – Fui comprando o que era necessário: estufa, sombretes para as hortaliças, frutíferas (tenho um coqueiro que comprei há três anos e que está começando a dar cacho agora). Tenho carambola, manga, limão tahiti, couve… Estou trazendo uma manga do Ceará, que se chama cuité, é deliciosa.

Neste tempo todo você não precisou fazer uso de adubos químicos?

Alcir Fernandes – Não, de maneira nenhuma. E, ao menos no meu caso, é bem possível porque eu mesmo produzo o adubo. Tenho a cama da galinha, que é onde ela faz o cocô, e o galinheiro é todo forrado com madeira picotadinha que se compra nas indústrias, a maravalha. Veja bem: a saúde do animal está em não pisar no cocô. Por isso põe o pó de serra, com uns dez centímetros de altura, para ele absorver aquela umidade do cocô e ir secando naturalmente, se misturando com a maravalha. De três em três meses eu troco e ponho aquela mistura para compostar. Depois de 90 dias vira um adubo orgânico rico em tudo porque a galinha tem tudo, tem todos os minerais. E não tem porquê usar agrotóxicos.

Certamente a sua formação, na roça em São Fidélis, o ajudou a perceber que era possível. Mas você precisou se capacitar, obter informações em livros?

Alcir Fernandes – Eu me tornei associado da Associação de Agricultores Biológicos (Abio), do Rio de Janeiro, cuja certificação é dada pelos próprios associados. Durante quase dois anos eu participei das reuniões, mas depois acabei saindo porque tomava muito meu tempo, cheguei à conclusão que não estava me acrescentando nada. Eu sei o que faço, tenho a minha consciência tranquila sobre os produtos que vendo. E fiz vários cursos sobre agricultura orgânica.

Mas a maior parte do que você sabe, você trouxe da sua experiência obtida na infância, em São Fidélis?

Alcir Fernandes – Não. De lá eu trouxe a vontade de fazer o que faço. Quando eu estava na época de me aposentar, a Caixa me disse para escolher um curso, que ela ofereceria. Eu escolhi um de agricultura orgânica, onde aprendi tudo (do professor Penteado, lá do Paraná), nem consigo explorar todo o curso no que eu faço. O resto é aquilo que a gente vai vivendo, vai acrescentando, como o próprio curso da Abio, além de conversas com amigos, de troca de informações.

Você pensou em plantar e vender para ganhar dinheiro?

Alcir Fernandes – Não, eu tenho a minha aposentadoria, o que me possibilita fazer isso com algum conforto. Para mim é um desafio muito grande, porque eu produzo e faço questão de vir vender. A minha alegria é estar com as pessoas, costumo dizer que é um estilo de vida. Aqui nesta feira, por exemplo, os clientes sabem muito bem diferenciar um produto orgânico, trazem muitas informações, conversamos. Eu nunca venderia algo que não fosse plantado desta forma. Cenoura, por exemplo, não dá na minha terra, mas eu trago lá do Brejal para vender porque me pedem.

No sítio você tem quem o ajude?

Alcir Fernandes – Sim, tive a sorte de ter um vizinho, com o filho dele, que queriam muito trabalhar numa produção agrícola orgânica e eles tomam conta para mim, por um bom salário que eu pago. Aqui também, tenho a ajuda da Juliana e do Marko. Na verdade, além de vender produtos orgânicos eu acabo ajudando também no lado social, mas nada de carteira assinada, nem de CNPJ. Trabalhei onze anos à noite e mantive uma confecção, sei muito bem o que é tentar acabar um CNPJ, dá o maior trabalho. Não quero mais isso. Do jeito que faço, só ajudo e não perturbo ninguém.

Como é sua rotina?

Alcir Fernandes – Às terças e quintas eu acordo de madrugada e passo o dia inteiro lá no sítio, às sextas eu vendo bolsas com produtos orgânicos lá em Copacabana, onde moro, por clientes que mantenho pelo whatsapp. Aos sábados vendo aqui na feira e os outros dias eu dedico à minha mulher, para descansar um pouco também.

O Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Você acha que a gente pode reverter este cenário?

Alcir Fernandes – Segundo tudo o que eu estudei sobre agricultura, o melhor adubo é o natural, é só plantar de maneira diversa. Dá trabalho, mas é muito prazeroso. Lá no sítio eu tenho quase uma agrofloresta. Mas não sei como seria usar adubo orgânico em monoculturas. Fico impressionado quando viajo e vejo: ali no Paraná, por exemplo, quilômetros e quilômetros de plantação de soja.

Tamara leitte

Autor Tamara leitte

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