O Pantanal é atualmente a casa de mais de dez milhões de jacarés (Caimam crocodilus yacare), mas o Hotel Baiazinha, localizado na margem do Rio Paraguai, em Mato Grosso, adotou só um como jacaré de estimação. “É o Pedrinho”, contou Margarete dos Santos Silva, funcionária do hotel, sobre o bicho de mais de metro que recebeu a reportagem do G1 em uma visita em maio. Pedrinho talvez ainda não tivesse nascido na década de 1980, quando sua espécie virou o alvo preferido do comércio de peles que matou pelo menos 5 milhões de exemplares, mas assistiu ao nascimento e expansão do negócio legal de criação de jacarés-do-pantanal para consumo.

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Só em um dos criadouros, atualmente mais de 70 mil animais são criados desde a choca até o abate – os ovos são capturados nos ninhos das fêmeas selvagens. Os defensores do modelo de negócios argumentam que, ao contrário do abate ilegal dos jacarés silvestres, no criadouro eles crescem com a carne mais macia, e por isso é possível aproveitar quase a totalidade do corpo.

Já os exemplares que precisam sobreviver na natureza se locomovem muito mais, seja dentro ou fora d’água, e por isso a única parte comestível para humanos é o rabo.

É o caso de Pedrinho. Sempre perambulando pelo entorno do hotel, ele já se apegou aos funcionários, e os segue com os olhos, ignorando os demais visitantes desconhecidos. Como todos os demais exemplares da espécie, ele é calmo, capaz de ficar muito tempo imóvel e se alimenta principalmente de peixes e animais invertebrados.

Na mira dos coureiros

Foi a docilidade que colocou o jacaré na mira dos coureiros paraguaios, que invadiram o Pantanal brasileiro em busca de animais para atender à demanda por peles na década de 1980, principalmente vinda de um comprador que chegou ao Paraguai (assista no vídeo acima).

“Foi alguma coisa como cinco milhões de peles de jacaré, de onça-pintada, de outros animais que apareciam na frente deles”, afirmou o coronel Angelo Rabelo, que era policial militar na época e foi destacado para combater a matança.

O coronel Ângelo Rabelo foi um dos policiais militares destacados para combater os coureiros que mataram cerca de 5 milhões de jacarés na década de 1980 — Foto: Eduardo Palacio/G1

O coronel Ângelo Rabelo foi um dos policiais militares destacados para combater os coureiros que mataram cerca de 5 milhões de jacarés na década de 1980 — Foto: Eduardo Palacio/G1

Além dos paraguaios, brasileiros e bolivianos também se envolveram no confronto, que durou cerca de dez anos, com as autoridades tentando impedir que os animais fossem mortos, suas peles retiradas e transportadas de avião até o Paraguai.

Houve mortos dos dois lados. Rabelo chegou a levar um tiro no ombro em um confronto que deixou um colega seu morto, da mesma forma como os coureiros costumavam matar o jacaré: um tiro entre os olhos.

O coronel, que hoje está reformado e trabalha como diretor de Relações Institucionais do Instituto Homem Pantaneiro (IHP), explica que a guerra contra os coureiros só se resolveu depois que o governo brasileiro criou a Polícia Militar Ambiental (PMA), com policiais especializados em crimes ambientais, e reforçou o contingente.

Na década de 1980, o combate à caça no Pantanal era feito apenas com um contingente pequeno da Polícia Militar, um dos motivos pelos quais o governo decidiu criar a Polícia Militar Ambiental (PMA) — Foto: Arquivo pessoal/Ângelo Rabelo

Na década de 1980, o combate à caça no Pantanal era feito apenas com um contingente pequeno da Polícia Militar, um dos motivos pelos quais o governo decidiu criar a Polícia Militar Ambiental (PMA) — Foto: Arquivo pessoal/Ângelo Rabelo

Resposta do governo

No fim da década, cerca de 200 policiais atuavam nesse combate, e a experiência adquirida, principalmente na navegação dos afluentes e nos caminhos de água conhecidos como corixos, que variam bastante de acordo com o nível de inundação do bioma, ajudaram a controlar a questão. Outro elemento também foi chave: uma legislação mais rígida.

Apesar de a caça a animais silvestres ser ilegal no Brasil desde 1967, foi só com a Lei Fragelli, aprovada em 1988, que ela de fato se tornou um crime.

“Isso fortaleceu muito as nossas ações”, lembra Rabelo. “Nós tivemos muitas situações de passar dias por um flagrante. Chegava lá na delegacia, a delegacia fazia o registro. Imediatamente, com um valor muito simbólico, o caçador era liberado novamente e voltava a caçar.”

O coronel Ângelo Rabelo, durante planejamento de operação contra coureiros no Paraguai, na década de 1980 — Foto: Arquivo pessoal/Ângelo Rabelo

O coronel Ângelo Rabelo, durante planejamento de operação contra coureiros no Paraguai, na década de 1980 — Foto: Arquivo pessoal/Ângelo Rabelo

Policiais tiveram que aprender as peculiaridades do bioma pantaneiro para conseguir acabar com os coureiros — Foto: Arquivo pessoal/Ângelo Rabelo

Policiais tiveram que aprender as peculiaridades do bioma pantaneiro para conseguir acabar com os coureiros — Foto: Arquivo pessoal/Ângelo Rabelo

A partir da década de 1990, a população de jacarés voltou a crescer, e desde o início da década especialistas já estimam que há vários milhões de exemplares do Caimam yacare no Pantanal.

Mas se as ameaças antes eram de compradores de pele que se aproveitaram da legislação flexível, hoje os animais continuam sendo alvo esporádico de moradores locais e turistas de pesca, que, longe dos olhos da fiscalização, matam o jacaré apenas para arrancar a cauda e comer a carne.

A cena de um jacaré morto boiando no Rio Paraguai foi flagrada pela reportagem do G1 em maio deste ano.

Jacaré morto boiando no Rio Paraguai: caça é proibida, mas locais dizem que ela é motivada por turistas, interessados em comer a carne da cauda do animal — Foto: Eduardo Palacio/G1

Jacaré morto boiando no Rio Paraguai: caça é proibida, mas locais dizem que ela é motivada por turistas, interessados em comer a carne da cauda do animal — Foto: Eduardo Palacio/G1

Criadouros controlados

A criação de jacarés para o abate é uma prática permitida no Brasil, mas exige licenças ambientais específicas. Nos últimos anos, esse tipo de comércio tem se expandido no Pantanal, assim como as denúncias de criadouros ilegais e de maus tratos aos animais.

A empresa Caimasul, em Corumbá (MS), cria e abate jacarés para o comércio legalizado de peles e para o consumo da carne — Foto: Eduardo Palacio/G1

A empresa Caimasul, em Corumbá (MS), cria e abate jacarés para o comércio legalizado de peles e para o consumo da carne — Foto: Eduardo Palacio/G1

Hoje, um dos frigoríficos que atua nesse setor fica a cerca de 30 quilômetros de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. A Caimasul abriu as portas em 2013 como um criadouro de jacarés, e há três anos inaugurou um frigorífico onde os animais passam pelo abate e corte. A operação tem licença do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul).

Atualmente, os jacarés são obtidos na natureza, mas ainda antes de nascer. Segundo explicou ao G1 Willer Cardoso Girardi, diretor administrativo da planta, o ciclo da criação ao abate começa na coleta de ovos das fêmeas selvagens.

“É uma oportunidade de geração de renda pro ribeirinho, que é o grupo que vai fazer a coleta dos ovos”, explicou ele. Esse processo, porém, precisa seguir várias regras.

Em 2017, a empresa já produzia 7 toneladas de carne por mês (assista abaixo à reportagem do Jornal da Globo):

Primeiro frigorífico de Jacarés no MS produz sete toneladas de carne por mês

Jornal da Globo
Primeiro frigorífico de Jacarés no MS produz sete toneladas de carne por mês

Primeiro frigorífico de Jacarés no MS produz sete toneladas de carne por mês

Primeiro, fazendeiros autorizam o procedimento nos ninhos que são encontrados dentro de suas propriedades e catalogados dentro de um sistema de georreferenciamento. Depois, um estudo é feito para estimar a população de jacarés no local e de ovos nos ninhos – no máximo 5% dos ninhos e 40% do total de ovos por região podem ser alvo da coleta.

“Não pode interferir no ciclo de renovação do animal”, diz Willer Girardi, da Caimasul.

No criadouro, os ovos são incubados e mais e 70 mil jacarés são mantidos em diferentes baias. Eles são divididos de acordo com seu tamanho, desde os pequenos recém-nascidos, que cabem na palma da mão, até chegarem a 8 quilos, o seu peso de abate.

Nascidos em cativeiro, jacarés bebês ainda nadam com pouca destreza em uma das baias do criadouro da Caimasul — Foto: Eduardo Palacio/G1

Nascidos em cativeiro, jacarés bebês ainda nadam com pouca destreza em uma das baias do criadouro da Caimasul — Foto: Eduardo Palacio/G1

Filhotes de jacaré nascidos em cativeiro na empresa Caimasul: coleta de ovos na natureza acontece entre dezembro e fevereiro — Foto: Eduardo Palacio/G1

Filhotes de jacaré nascidos em cativeiro na empresa Caimasul: coleta de ovos na natureza acontece entre dezembro e fevereiro — Foto: Eduardo Palacio/G1

Jacaré em cativeiro x jacaré selvagem

Girardi diz que, em cativeiro, os jacarés têm comportamentos distintos do que quando crescem selvagens. O principal é o fato de que, no ambiente controlado e em temperaturas ideais, eles crescem mais rapidamente, e em cerca de 20 meses já estão prontos para o abate.

Na natureza, um jacaré vive muito mais, e pode chegar aos 70 anos de idade.

Além disso, o processo de amadurecimento do jacaré silvestre é mais demorado e acontece quando ele tem entre nove e dez anos de idade, segundo estudos feitos por especialistas. Na Caimasul, Girardi conta que se surpreendeu quando, com cerca de dois anos, os animais começaram a copular dentro das baias.

A novidade fez a empresa apressar seus planos de conseguir seus próprios ovos a partir do cruzamento entre os machos e fêmeas do criadouro. Hoje, 1.300 exemplares são usados como matrizes, e 2018 foi o primeiro ano em que a empresa viu nascer seus primeiros jacarés reproduzidos em cativeiro.

Tamara leitte

Autor Tamara leitte

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