Eu já vi milhares de bombas de gasolina na minha vida, mas este é meu primeiro encontro com uma estação de reabastecimento de hidrogênio.
Ele fica na beira de uma estrada nas Ilhas Orkney, um arquipélago na costa nordeste da Escócia, onde os moradores querem que seus carros, balsas e caldeiras funcionem com este tipo de combustível.
Quando nos aproximamos da estação, ela parece ser impressionantemente normal. Não há atendentes com trajes de proteção que cobrem o corpo inteiro, ruídos dignos de ficção científica ou sinais de néon para alerta. Apenas uma bomba comum à espera de ser usada.
Mas Adele Lidderdale, uma oficial do projeto de hidrogênio da prefeitura das ilhas Orkney, está um pouco nervosa: um dos sensores de sua van tem apresentado defeito ultimamente, diz ela, e pode não aceitar a mangueira de combustível. Ela conecta o bocal em sua van e volta a olhar a tela na outra extremidade. Parece ficar aliviada quando vê a indicação de que o processo de abastecimento começou.
Três minutos depois, o tanque está cheio, e nós partimos – tudo isso sem usar uma única gota de gasolina.
As Ilhas Orkney têm cinco caminhonetes movidas a hidrogênio, combustível que não emite gases de efeito estufa nem poluição — Foto: Pixabay
Desde que as Ilhas Orkney começaram a planejar sua economia baseada em hidrogênio, em 2016, nem sempre tudo correu tão tranquilamente. Quando cinco vans, incluindo esta, chegaram, em 2017, o arquipélago não tinha hidrogênio para abastecê-las, já que a produção ainda não estava em andamento.
Depois de conseguir carregar os tanques de abastecimento, os responsáveis encontraram outro problema: quem poderia consertar um veículo a hidrogênio quebrado em uma comunidade de 21 mil pessoas?
Em resposta aos desafios, os moradores contrataram um especialista para treinar um mecânico local, criaram novos programas educacionais para operadores de balsas e elaboraram regulamentos para atualizar a lei marítima para permitir o uso de hidrogênio em embarcações.
E não para por aí. Se tudo correr conforme o planejado, até 2021, estas ilhas terão a primeira balsa para carros e passageiros do mundo movida apenas por hidrogênio.
O arquipélago pode parecer um lugar improvável para tais aspirações de vanguarda. Mas, se conseguir fazer isso, pode inspirar outras comunidades a também dependerem menos de combustíveis fósseis. “Se podemos sonhar com dirigir um navio a hidrogênio, não há razão para que outros não sigam pelo mesmo caminho”, diz Lidderdale.
Uma fonte de energia limpa
Ao contrário da gasolina ou do diesel marítimo, a queima de hidrogênio não produz, por si só, quaisquer subprodutos prejudiciais ao meio ambiente.
Agora, enquanto dirigimos pela capital de Orkney, Kirkwall, o hidrogênio se combina com o oxigênio dentro da van para produzir uma reação elétrica que aciona o motor. A única emissão é água pura. Em outras palavras, não há poluição do ar nem emissões de gases de efeito estufa (como o dióxido de carbono), que contribuem para o aquecimento global.
Além dos carros, o hidrogênio poderia ser usado para aquecer edifícios, alimentar instalações elétricas, mover trens, balsas e navios de carga e em processos industriais.
Outro benefício é que se você produz muito hidrogênio, pode armazená-lo e transportá-lo em grande escala com relativa facilidade.
Como um consultor do instituto de pesquisa Bloomberg New Energy Finance escreveu em uma coluna publicada no ano passado, o hidrogênio “é uma das formas mais promissoras de se lidar com armazenamento de energia a longo prazo, muito além dos minutos, horas ou dias de autonomia que poderiam ser fornecidos por baterias”.
Mas produzir hidrogênio é complicado. Embora seja a substância química mais abundante no Universo, muito pouco dela está disponível como gás. Em vez disso, forma fortes ligações com outros elementos, como por exemplo, com o oxigênio, para criar água.
Você precisa quebrar essas ligações para “liberá-lo” para ser usado. Esse processo requer uma grande quantidade de eletricidade, que pode não vir de fontes “limpas” em si e que poderia estar sendo usada para outros propósitos, como em veículos elétricos.
Uma maneira mais barata de produzir hidrogênio envolve a captura e armazenamento de metano e carbono. Alguns especialistas argumentam que isso pode fazer mais sentido em larga escala, mas pode não ser tão simples.
No entanto, uma pesquisa publicada em fevereiro de 2019 na revista Nature aponta que o hidrogênio produzido usando eletricidade renovável pode ser competitivo em termos de custo em relação a metano e carbono em uma década.
Mas, para as Ilhas Orkney, o hidrogênio via eletricidade funciona bem. O arquipélago já possui uma das maiores frotas de veículos elétricos do Reino Unido.
E, mais importante, graças a fontes como energia das marés e das ondas, as Ilhas Orkney geram mais eletricidade limpa do que seus habitantes precisam. Mesmo depois de exportar o excedente para a rede nacional britânica, os ventos, ondas e marés das ilhas geram cerca de 130% da eletricidade de que sua população necessita.
Como é difícil armazenar eletricidade em grande escala – ainda não há baterias gigantescas para comunidades inteiras -, algumas turbinas eólicas precisam ser desligadas em certas ocasiões para evitar danos às linhas de energia do continente, que não podem ser modernizadas a um baixo custo.
Este corte irrita os moradores das ilhas, e também sai caro para as comunidades que investem em energia limpa. Eles preferem manter as turbinas em movimento ou, alternativamente, encontrar uma forma de usá-las. Então, os moradores tiveram uma ideia: e se usarmos energia limpa excedente para produzir hidrogênio?
Produzindo hidrogênio
O hidrogênio que Lidderdale bombeava para dentro do tanque de sua van vem da ilha de Eday, onde vivem cerca de 130 pessoas.
Eday tinha muita energia limpa e nenhuma maneira de usá-la A população havia investido em uma turbina eólica, na esperança de vender eletricidade à rede nacional do Reino Unido e lucrar com a revolução da energia verde.
Mas, no final daquele ano, a empresa operadora da rede anunciou que muitas novas turbinas haviam surgido no norte da Escócia e que não poderia absorver toda a energia limpa produzida, diz o prefeito das Ilhas Orkney, James Stockan.
A ilha também é o local onde o Centro Europeu de Energia Marinha (EMEC, na sigla em inglês), a principal instituição global de energia de marés, testa novas turbinas do tipo nas águas escocesas.
Com duas fontes confiáveis de energia limpa, a ilha se tornou um lugar ideal para começar a fabricar hidrogênio. Mas, antes de mais nada, os moradores do arquipélago queriam saber se poderiam produzí-lo em primeiro lugar.
Em setembro de 2017, uma pesquisa apoiada pelo governo escocês deu a resposta. Dentro de um contêiner verde do tamanho de um trailer, os cientistas passaram eletricidade através da água para dividir suas moléculas em hidrogênio e oxigênio em um processo chamado eletrólise.
O oxigênio foi liberado de volta à atmosfera. O hidrogênio foi cuidadosamente comprimido e armazenado em cilindros, usados primeiramente para uma aplicação bastante modesta: seu conteúdo foi convertido em eletricidade por meio de uma célula de combustível no porto de Kirkwall, para acender luzes em alguns dos navios do porto, bem como aquecer um salão frequentado por marinheiros.
Foi a prova de que se você tem muito vento em uma sexta-feira, pode criar hidrogênio com ele e usá-lo para ligar as luzes, aquecer um quarto ou ligar seu carro no domingo.
Depois disso, novos projetos começaram a surgir rapidamente. Uma segunda estação de eletrólise foi instalada na ilha de Shapinsay, bem como uma caldeira para uma escola e plantas para criar uma balsa híbrida. Enquanto isso, havia várias estações de recarga e cinco caminhões adaptados a hidrogênio. Mas havia metas ainda mais ambiciosas à frente.
Tecnologia pode ‘limpar’ uma indústria poluidora
Quando nossa balsa saiu do porto, o motor movido a diesel e pistões fez barulho, mas ninguém a bordo parecia se importar. Os cerca de uma dúzia de passageiros permaneceram conversando entre si ou navegando em seus telefones.
A ausência de incômodo diante desse ruído metálico toda vez que um motor é acionado significa que normalizamos a poluição sonora?
Inicialmente, vim às Ilhas Orkney por causa deste navio. Empresas e governos em todo o mundo estão pesquisando como usar o hidrogênio para limpar a poluidora indústria de transporte marítimo, que é responsável por mais de 2% de todas as emissões globais de dióxido de carbono.
Quando perguntei a um especialista da Fundação Europeia do Clima, uma organização sem fins lucrativos dedicada a políticas ambientais no continente, sobre a fronteira da navegação limpa, ele me disse para visitar o arquipélago.
Como um arquipélago de ilhas dispersas, Orkney depende do sistema de balsas. Médicos, bens, professores e membros de famílias viajam diariamente entre os portos, permitindo que exista um senso de comunidade.
Mas as balsas também consomem cerca de um terço dos combustíveis fósseis das Ilhas Orkney, dificultando sua ambição de se tornar um lugar mais verde. “Se você está procurando como livrar o setor marítimo do carbono, esta é uma ótima forma de fazê-lo”, diz John Clipsham, gerente para hidrogênio da EMEC.
A ilha de Shapinsay, para onde estamos indo, abriga pouco mais de 300 habitantes entre costas e colinas impressionantes. Ao lado do píer, Steve Bews, o presidente do Fundo Comunitário de Desenvolvimento de Shapinsay, espera por mim em uma van branca movida a gasolina.
Seguimos através do campo montanhoso até a turbina eólica que fica no topo de uma encosta. Construída em 2012, a turbina da comunidade criou renda suficiente para fornecer subsídios educacionais, comprar um táxi elétrico para serviços comunitários (não há táxis na ilha) e fundos para uma viagem extra da balsa para Kirkwall todas as noites.
Mas seu funcionamento é restringido, assim como sua lucratividade, porque Bews diz que, de outra forma, 36% de seu potencial seria desperdiçado.
Quando várias organizações se aproximaram há alguns anos atrás, procurando excedente de eletricidade para produzir hidrogênio em Shapinsay, o fundo concordou. “Temos muita eletricidade de fonte limpa, e isso faz sentido”, diz Bews.
A estação de eletrólise estava em construção em dezembro de 2018 e deve ficar pronta em 2019. Será capaz de produzir 500 kg de hidrogênio por dia, aproximadamente a demanda diária do serviço de balsa de Kirkwall para Shapinsay, caso ele se torne operacional.
As pessoas em Shapinsay conseguem vender o excedente de eletricidade e recebem um aquecimento mais barato para seus filhos: uma caldeira de hidrogênio ao lado da escola local aquece suas salas de aula.
Um tempo depois, Bews me deixa novamente no cais. Uma vez a bordo, a balsa sai de Shapinsay com seu ruído metálico do transporte do século 20. Eu me pergunto se seus dias são contados.
A jornada à frente
Mesmo que os dias de diesel marítimo tenham um prazo de validade, não prenda sua respiração esperando por isso. O plano de Orkney é um protótipo. O resto do mundo levará anos ou décadas para seguir pelo mesmo caminho.
Ainda assim, os primeiros passos são promissores. O trabalho no projeto de balsa já está em andamento em Port Glasgow, onde fica o estaleiro parceiro Ferguson Marine. Enquanto isso, um projeto californiano chamado Water-Go-Round promete ter uma balsa de hidrogênio funcionando ainda este ano.
Um programa conjunto sueco-norueguês está explorando como a tecnologia de célula combustível pode mover embarcações maiores, e uma gigante japonesa anunciou planos de ter um navio de 200 metros de comprimento com emissões zero até 2050.
No nível político, a Organização Marítima Internacional (OMI) concordou, em abril de 2018, em reduzir as emissões de gases de efeito estufa do setor. Os países reunidos na sede da OMI em Londres prometeram fazer cortes de 50%, até 2050, em comparação com os níveis de 2008.
É uma grande mudança para qualquer comunidade fazer. Da casa em que fiquei em Stromness, a segunda cidade mais populosa das Ilhas Orkney, pude ver Flotta, uma pequena ilha conhecida por seu terminal de petróleo. A certa altura, foi o segundo maior a atender o Mar do Norte britânico.
Comparado ao otimismo da ilha em relação à energia limpa, o terminal é uma presença sinistra – tanto uma relíquia do passado quanto uma lembrança de como os combustíveis fósseis estão entrelaçados no tecido social atual.
Caron Oag, diretora de marketing para hidrogênio da EMEC, contou que seu pai trabalhou no terminal de petróleo durante anos. É uma história ouvida em todas as ilhas. “Muitas pessoas da minha geração cresceram em lares onde a renda vinha da indústria de petróleo”, disse Oag.
Como muitos jovens do arquipélago, ela sentiu que sua terra natal oferecia poucos caminhos profissionais e se mudou para o exterior para trabalhar e estudar.
Mas isso mudou. A indústria de energia limpa está agora dando aos jovens das Ilhas Orkney novas opções profissionais além da agricultura e dos combustíveis fósseis. “Meu trabalho é um bom exemplo de como estamos criando novas oportunidades”, diz Lidderdale, que trabalhou para o EMEC entre 2012 e 2016.
Muitas pessoas das Ilhas Orkney parecem orgulhosas da sofisticação de suas tecnologias. Mas parecem ter ainda mais orgulho da capacidade de fornecer empregos de qualidade para seus jovens profissionais. O potencial da indústria até mesmo está atraindo pessoas de fora dali.
Talvez as Ilhas Orkney possam fornecer um rumo para outras pequenas comunidades que estão vagamente conectadas a capitais nacionais ou regionais. Talvez a transição para longe dos combustíveis fósseis abra uma janela de oportunidade para estas regiões.
“Existem milhares de ilhas no mundo”, diz o prefeito Stockan. Ele sonha com um mundo livre de carbono, onde as ilhas assumam a dianteira, em vez de ser um reflexo tardio de novas políticas.
“Temos uma commodity exportável (com o hidrogênio) que podemos compartilhar com elas para que não sejam as últimas – mas as primeiras – a conseguir fazer isso.”
Fonte: G1 Natureza