Estou sentada em frente à mesa de jantar de olhos fechados, movendo um prato para frente e para trás, enquanto repito: “Teste! Teste! Teste!”. Pode parecer esquisito, mas estou tentando aprender a fascinante técnica da ecolocalização: navegar pelo mundo por meio do eco, como um morcego ou um golfinho.
A ecolocalização ganhou destaque nos últimos anos como um recurso que alguns cegos utilizam para mapear o que está a sua volta com uma precisão espantosa. Eles podem detectar a localização de árvores, edifícios ou portas, fazendo “estalos” com a boca e ouvindo o eco.
Uma pesquisa mostrou, no entanto, que qualquer pessoa – não só quem tem deficiência visual – pode aprender noções básicas deste sistema de orientação espacial.
Além disso, cada vez mais estudos nos encorajam a expandir nosso potencial sensorial – despertando sentidos que foram esquecidos, reprimidos ou até mesmo considerados fora do alcance dos seres humanos.
A ecolocalização humana é reconhecida como um conceito desde os anos 1940. Mas só foi estudada sistematicamente na última década, tanto como uma habilidade com potencial transformador para pessoas cegas, quanto como uma forma de entender como nosso cérebro lida com informações sensoriais.
Algumas pessoas são especialistas em navegar pelo mundo por meio do eco — Foto: BBC/Getty Images
“Nós avaliamos os melhores ecolocalizadores humanos, que chamamos de ‘especialistas em eco'”, diz Lore Thaler, professora de psicologia da Universidade de Durham, no Reino Unido, uma das maiores especialistas em ecolocalização humana do mundo.
“Normalmente, são pessoas que usam (a ecolocalização) há muito tempo e mostram uma boa acuidade (capacidade de percepção). São capazes de fazer coisas que, se você é novo nisso, simplesmente não consegue. “
Audiovisual
Apenas fazendo “estalos” com a língua, especialistas em eco conseguem detectar se um objeto – como um disco – que está a um metro de distância deles mudou de lugar.
Podem dizer se um corpo a dois metros de distância é um poste de luz, um carro ou uma árvore. E mesmo os novatos conseguem identificar uma parede a mais de 30 metros.
Isso não significa que a ecolocalização ofereça às pessoas a mesma precisão que a visão. Algumas espécies de morcegos podem usar a emissão de ultrassom para caçar mariposas, mas os ecolocalizadores humanos têm dificuldade para rastrear alvos tão pequenos.
E como a ecolocalização só funciona para objetos tridimensionais, ela não pode ser usada para ler textos impressos, por exemplo.
No entanto, Thaler destaca que ainda assim é uma técnica muito poderosa. Usada em conjunto com os suportes tradicionais – como bengalas ou cão-guia -, a ecolocalização pode ser transformadora para pessoas cegas, conforme mostrou sua pesquisa.
Pode ajudá-las a viajar com mais segurança, evitar obstáculos no nível da cabeça e até mesmo reconhecer seu próprio prédio.
“São essas pequenas coisas que podem fazer a diferença em quão confiantes as pessoas são e se ficam felizes ao sair de casa”, diz ela.
Para quem tem deficiência visual, a ecolocalização pode fornecer mais controle sobre o espaço que está sendo explorado — Foto: BBC/Getty Images
Embora Thaler não tenha deficiência visual, ela consegue se “ecolocalizar” e tem ensinado a técnica para adultos e crianças cegas de até três anos.
“Se você enxerga e de repente perde a visão, você realmente perde muito em termos de como acessar as coisas e como fazer para se movimentar”, afirma.
“A ecolocalização facilita muito neste sentido, porque oferece mais controle sobre o espaço que você está explorando.”
Se você quiser experimentar, tente com um prato ou uma bandeja. Feche os olhos, comece a falar (ou faça um “estalo” com a boca) e mova o objeto para frente e para trás, de um lado para o outro. Preste atenção na mudança do som.
Sem abrir os olhos, você aos poucos será capaz de dizer onde o prato está. Como próximo passo, Thaler sugere rodar lentamente, de olhos fechados, dentro de casa e usar o som para dizer se você está de frente para a parede ou para um cômodo.
O cérebro pode ser capaz de ‘enxergar’ com os ouvidos — Foto: BBC/Getty Images
A equipe dela está estudando atualmente imagens do cérebro de pessoas cegas e com visão que estão aprendendo a ecolocalização.
E os resultados preliminares mostraram algo surpreendente: quando as pessoas com visão aprendem a se orientar pelo som, elas usam a parte do cérebro que geralmente diz respeito à visão.
“Costumamos pensar na visão como um sentido que existe por si só e que há certos recursos dedicados a ela”, como os olhos e partes específicas do cérebro, diz Thaler.
Mas, em vez disso, nosso cérebro pode ser capaz de processar informações sensoriais de uma maneira um pouco mais flexível – “vendo” com nossos ouvidos, se quiser. É que normalmente, para as pessoas que enxergam, não há razão para isso.
“Se você é uma pessoa que enxerga, na maioria das vezes você obtém as informações espaciais por meio da visão. Há muito pouco incentivo para ampliar seu repertório sensorial, porque para você a visão é suficiente. Então, por que se incomodar?
Trabalho sensorial em equipe
Na vida cotidiana, nosso verdadeiro superpoder sensorial não está em nenhuma habilidade individual, mas sim na combinação das mesmas. Isso acontece porque cada sentido é relativamente fraco sozinho.
“Muitas vezes, as pessoas ficam bastante surpresas quando são forçadas a usar apenas um [sentido] de uma maneira, com o quanto são ruins nisso”, diz James Negen, pesquisador associado do departamento de psicologia da Universidade de Durham.
Nossa visão periférica, por exemplo, é bastante precária. Mas podemos combiná-la com outros sentidos, como a audição, para descobrir onde algo está – um carro se aproximando, por exemplo. Isso é conhecido como a “vantagem da precisão bimodal” e pode ser essencial para algo tão simples quanto atravessar a rua com segurança.
Mas há um porém: as crianças ainda não têm essa habilidade.
“Crianças com menos de 10 anos fazem um monte de coisas que requerem conjugar o que estão vendo e o que estão ouvindo, ou o que estão tocando e aquilo que estão vendo, todos esses diferentes processos sensoriais”, diz Negen.
“Mas este aspecto muito específico – quando você coordena dois (sentidos) para ser mais preciso do que um sozinho – as crianças não foram capazes de mostrar em vários estudos.”
Para crianças que perderam parte da visão, isso pode ser um obstáculo para a ecolocalização. Já os adultos podem aplicar a técnica juntamente com a visão que restou – e se sair melhor do que se estivessem usando qualquer um dos sentidos sozinho.
Mas as crianças geralmente não conseguem fazer isso. Elas tendem a sintonizar ou a visão ou a audição. A questão é se eles podem aprender a usar os dois sentidos.
Negen e sua equipe conseguiram fazer isso em laboratório. Eles explicaram às crianças como usar cada sentido em determinada tarefa. Elas foram então capazes de combinar os sentidos como um adulto e fazer julgamentos mais precisos. Uma investigação mais aprofundada pode mostrar se este aprendizado terá um efeito duradouro.
Enquanto isso, eu continuo fazendo minhas próprias experiências com a ecolocalização, usando os conselhos de Lore Thaler para iniciantes. Minha maior vitória até agora foi passar por uma porta de olhos fechados, sem tocar nas laterais.
É estranho pensar que essa habilidade esteve dentro de mim a vida toda, inutilizada e despercebida, até ser aflorada por um experimento peculiar com um prato de porcelana.
Fonte: G1 Natureza