O grito da arara ecoa pelo sertão da Bahia nas primeiras horas do dia. O chamado vem de uma das 1.700 araras-azuis-de-lear que vivem na região do Raso da Catarina, na caatinga, o bioma mais biodiverso do planeta. Elas só existem nesta parte do mundo. Monogâmicas, voam em duplas ou em trio, quando o filhote ainda não se desprendeu dos pais. No amanhecer, elas saem em busca do licuri, um coquinho que cresce aos cachos em palmeiras da região. Chegam a percorrer até 60 km ao dia atrás de alimento. Ao entardecer, retornam à morada.
A aparente normalidade da cena esconde um problema: a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) está em perigo de extinção. Outros 182 animais da caatinga também estão ameaçados, como a onça-pintada e a parda, que quase desapareceram do semiárido nos últimos anos.
No caso das araras, os esforços para recuperar a população passam pela manutenção dos espaços nos quais elas vivem, pela educação ambiental e pela luta contra o tráfico de animais.
Para conhecer estas ações, o G1 percorreu 1,6 mil quilômetros no sertão da Bahia e visitou as regiões do Raso da Catarina e do Boqueirão da Onça como parte do especial “Desafio Natureza”. Antes, a série de reportagens tratou do lixo em Noronha. (Veja bastidores da série, 10 fatos e soluções para um problema que vai além da ilha.)
Da ‘redescoberta’ à preservação
A arara-azul-de-lear é o único psitacídeo (família de aves que inclui os periquitos, araras e papagaios) alvo da Aliança Brasileira para Extinção Zero (Baze). Ela também está na lista vermelha da BirdLife International, uma das principais referências em preservação de aves.
A outra arara foco de preservação é a ararinha-azul, da espécie Cyanopsitta spixii, criticamente ameaçada e já extinta na natureza. Foi esta espécie que inspirou o personagem Blu do filme Rio, lançado em 2011 com direção do brasileiro Carlos Saldanha. Em todo o mundo, estima-se que existam apenas 160 destas aves, todas em cativeiro (confira as diferenças e semelhanças entre as espécies no quadro ao fim da matéria).
Para que a arara-azul-de-lear não tenha o mesmo destino da ararinha-azul, diversos projetos estão sendo desenvolvidos para estimular o crescimento da população, que vive e se alimenta na região de Canudos, Serra Branca, Euclides da Cunha, Jeremoabo, Santa Brígida e Baixa do Chico (veja quadro abaixo). Eles são focados em preservação da área e do licuri, principal alimento desta ave.
No Boqueirão da Onça, a quase 400 km dali (ou 250 km, em linha reta), uma iniciativa inédita na região busca repovoar a área onde antes havia cerca de 30 araras-de-lear, mas agora tem apenas duas. Especula-se que as demais tenham sido levadas por traficantes nos anos 1990. Um projeto monitora a soltura de seis novos indivíduos naquele espaço para incentivar a reprodução da espécie.
Uma das ações de preservação do espaço das araras está em Canudos, a cidade conhecida pela guerra que terminou em 1897 com 25 mil mortos. A poucos quilômetros do centro da cidade fica a Toca Velha, um vale formado por paredões de arenito que ganhou este nome porque é onde as araras fazem suas tocas, dentro de buracos.
Mantido pela Fundação Biodiversitas, o espaço tem entrada controlada de visitantes, o que garante tranquilidade para a reprodução da espécie e inibe a ação de traficantes de aves, diz Tania Maria Alves da Silva, bióloga e gerente da Estação Biológica de Canudos.
Foi lá que uma expedição coordenada pelo ornitólogo alemão Helmut Sick “redescobriu” a arara-azul-de-lear na virada de 1978 para 1979.
Até então, sua existência só era conhecida por meio de uma ilustração de 1832 feita pelo artista inglês Edward Lear (daí o nome da arara) e pela descrição de 1856 feita por Charles Lucien Bonaparte (sobrinho de Napoleão Bonaparte) a partir de exemplares taxidermizados do Museu de Paris e do Zoológico da Bélgica. Como ninguém sabia a procedência da arara, pensava-se que ela estava extinta.
Helmut Sick, naturalizado brasileiro, soube de relatos de que poderia haver este tipo de arara no sertão baiano e foi atrás do bicho.
“Em 5 de janeiro chegamos à ‘Toca Velha’, num dos desfiladeiros (ou ‘talhados’, no linguajar regional) usado como dormitórios e criadouros pelas araras. Atravessando o rio Vaza-Barris penetramos em outro desfiladeiro (no limite sul do Raso da Catarina) atingindo a ‘Serra Branca’ onde, em 16 de janeiro, coletamos um exemplar de A. leari (o primeiro obtido em natureza por um ornitólogo), assegurando assim a necessária prova da descoberta” – Helmut Sick, em artigo publicado na “Revista Brasileira de Zoologia da USP”, em 1987.